terça-feira, 12 de novembro de 2013

Pororoca

POROROCA1

Paulo Leminski

O acontecimento mais importante da cultura brasileira, nos últimos dez anos, corre o perigo de passar despercebido.

Os conformistas continuam falando que continuamos vivendo num “deserto de idéias”, ignorando que debaixo de seus próprios pés se agitam incontáveis lençóis petrolíferos, capazes, como nos ensinam os noticiários recentes, de alterar os destinos do mundo. Ou do caldo de cultura onde, como diz São Paulo de seu Deus, “nos movemos, atuamos e somos”.

Me refiro à pororoca, nome que dou ao choque entre a onda paulista e a onda baiana. Paulistas: os poetas concretos. Baianos: a tropicália. Os nomes: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari.

Assim como o encontro entre o rio Amazonas e o oceano Atlântico provoca uma comoção singularíssima, a ponte São Paulo-Bahia deverá nortear e desnortear os destinos da cultura brasileira nos próximos decênios.

Nessa comparação com a pororoca amazônica, os concretos paulistas exercem o papel do mar. São a abertura para o exterior.

O rio é a tropicália baiana: a excepcionalidade do menino maior, Caetano, que reduziu a alegria à sua equação elementar. Alegria = alegria. O “trobar clus” de Gilberto Gil (trobar clus = “compor fechado” era a escola dos trovadores provençais que compunham difícil, em contraposição aos que facilitavam no “trobar léu” = compor leve). O objeto mal e mal identificado. O violão bem afinado, o disco bem gravado: o nome no mercado, o empresário bem cotado. Esse buraco onde caiu o negro gato de Roberto Carlos, Macalé chamado e jazzista nato: filho de francês e crioulo, como só acontece em New Orleans (Macalé cantou num desses Woodstocks caboclos e “eu sou um NEGRO GATO de arrepiar” de Roberto Carlos, engatando porém na palavra buraco, pelo menos 20 vezes. Me disse ele: “pra fazer um buraco na cabeça de quem ouvia”. Poesia, me disse Pedro Leminski, é a arte de dar um branco da cuca de quem lê. Ou escuta, acrescento eu.) A sublime loucura de Sailor-moon, outrora Wally Salomão. Segurando as pontas para dar um troço. O judeu errante, Mautner, convertido à Bahia, sem medo da selva africana graças à cancha que adquiriu na concha acústica de Copacabana: beat, banjo & crazy pop rock. O fantasma de Torquato Neto, “suicide beau”, irmão em solução final de Maiakovski, exímio na arte, exato, dando uma de ausência – como Hendrix. O glamour de Gal, da Graça ou dos estados de graça, musa feita estrela. Bethânia, a betoneira, digerindo sentimentos como quem começa a dar pancada nas paredes industriais do mundo de mercado: sintamos, irmãos. São sintomas. Bahia: antes, trivial variado do samba enredo; agora, lugar comum do turismo. Ao fundo, João Gilberto (o único João, o João máximo, tão joão que resgatou do anonimato onomástico essa banalidade de chamar-se João, o joão gostoso, o joão dissonância: this is what bossanova is all about).

Graças tropicais & industriais, de um, de repente e de todos.

PAUSA

Enfim veio a pororoca. O encontro do mar com o rio.

O “know-how” de 20 e tantos anos da poesia concreta paulista trazia a marca dos grandes produtos industriais do sul. O acento gringo. O irlandês dos Brown (Augusto e Haroldo são BROWN de Campos). O osasquês de Décio, bárbaro bizantino, operário do ABC, filho de pignataro = “oleiro”. O jingle filarmônico de Rogério Duprat. O plano piloto da Poesia Concreta, gêmeo do de Brasília. Marketing e informação em dia.

O lugar ao sol de séculos de Bahia – África, revelado, num momento de festival e vaias, (via Duprat, arranjador mor da Tropicália), fazendo trocadilho, mudando os Mutantes, brincando palavras, botando pudim de abacaxi na formiga dos tamanduás nacionais (os acéfalos que meteram no olho da rua o júri que premiava “Cabeça”, de Walter Franco. Caetano “Salvador é uma cidade de muita personalidade”. Triste Bahia, de Gregório de Matos. Transas. Os números cabalísticos: 2222. Na terra onde inventam instrumentos, viver é “luxe, calme et volupté” (Baudelaire): lá até os deuses têm pedigree (black power). É onde não se lançam os dados, mas os búzios. Onde se dizem palavras novas: babalorixá, amaralina, acarajé, o-ba-lalá, calmarja, anticomputador sentimental.

O encontro do rio com o mar – não físico mas químico, ou melhor, alquímico – só poderia dar um resultado comparável à conjunção do salitre, carvão e enxofre: pólvora. O influxo do novo mundo verbal e semiótico dos concretos paulistas sobre os geniais compositores baianos: o sangue e o suingue novo dos baianos nas geniais equações da paulicéia estruturada.

Caetano teve a macheza jagunça de quebrar a cara numa gravação experimental como “Araça Azul” (O Azur de Mallarmé), pelado, muitas vezes pelado, em sinal de grande pureza, como disse Lígia, ao interpretar certo a má versão que eu estava dando da capa da bolacha (eu falava em contraste/contradição entre a capa naturista e o disco – erudito).

Paulistices, dirão os baianistas autênticos. Não tem nada: a pororoca esta aí para isso mesmo. Para Augusto de Campos sair em vôos Lupicínios, por terrenos sonados e dissonados pelo Mestre João. Os quais já eram da intimidade de Zé-Lino Grünewald, enrustido naquela de grande crítico de cinema quando a sua magnitude está em todas.

Zé-Lino: o que preferiu dar a impressão de ficar para trás porque pretendia chegar antes. Nostalgia, cafonália. Ruy Castro entendia e a gente se atrapalhava.

Pororoca: São Paulo + Bahia. A indústria, o folclore. Os internacionais e a região, incrível, não acham?

FATOS

Augusto de Campos, de longe o mais notável crítico da música popular brasileira, empatou todo o seu prestígio intelectual em Caetano, quando o Brasil inteiro se dedicava meticulosamente em apedrejar o menino de Santo Amaro.

Pensou bem e escreveu: “É proibido proibir os Baianos”. “A explosão de Alegria-Alegria”, quando era moda permanente achar que aquilo tudo era moda passageira.

Os tempos por vir falaram mais alto. Diriam que Caetano e Gil eram mesmo os legítimos inventores da nova música popular brasileira, aberta, avessa a xenofobias míopes, ciosa do seu futuro.

O assunto do primeiro papo entre Augusto e Caetano foi uma tara comum: Lupicínio Rodrigues. O Lupicínio do Acaso: o acaso de “se acaso você chegasse”. Seria o mesmo acaso cibernético de Mallarmé, objeto de uma poema ortogonal de Augusto de Campos (le Hasard)? O acaso que aproximou Augusto e Caetano?

NOTAS (Foi publicado também como anexo da dissertação de mestrado "Leminski lírico: um estudo sobre as canções do poeta Paulo", de onde foram retiradas as notas. Disponível em: http://tede.ufsc.br/teses/PLIT0561-D.pdf.)

1 Publicado no jornal Diário do Paraná, em 17 jun. 1977. “Pororoca” é o encontro do rio Amazonas com o Oceano Atlântico. Leminski usa o fenômeno como alegoria ao encontro do concretismo com o tropicalismo, que seria a união entre o europeu e o tropical.

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